“Nenhum homem é uma ilha, disse John Donne, mas atrevo-me humildemente a acrescentar: nenhum homem e nenhuma mulher é uma ilha, mas cada um de nós é uma península, com uma metade unida à terra firme e a outra a olhar para o oceano”
Amos Oz
Amos Oz
Quando li este excerto do livro Contra o Fanatismo de Amos Oz, estava dentro de um autocarro apinhado de gente trabalhadora, de ar cansado, silencioso (ou silenciado), olhares distantes e totalmente absortos do mundo. E dei por mim a pensar... “Cada Homem é realmente uma península. Este gajo tem razão. Mas se assim o é, estes seres não são Homens”.
Existe alguma humanidade nesta vida pendular das cidades? Ora aqui, no trabalho, em frente a máquinas maquiavélicas. Ora de volta à gaiolazinha pendurada numa enorme árvore de betão, lá longe, no subúrbio. Sonolentos, seriamente sonolentos.
Olhava para as pessoas que seguiam nos bancos atrás do meu: havia alguns que deixavam cair as cabeças para a frente, adormecendo, numa entrega inevitável ao marasmo. Deixavam cair as suas cabeças pesadas sem pensamento algum, abdicando, simplesmente, de observar uma paisagem tantas vezes repetida.
Sentia-me realmente no meio de um enorme arquipélago com escassas ligações entre si. Todos vítimas da mesma actividade vulcânica que os criou, todos com as mesmas ansiedades e aspirações. Todos sozinhos, isolados na sua esfera íntima.
E como é complexa a esfera íntima de cada uma destas ilhas! Apresentam-se como uma areia apática e disforme, constituída por milhões de pequenos grãos que nunca se tocam entre si. Mas, ao microscópio, todas estes grãos são complexos. Fervilha dentro deles um espírito humano... continuo a acreditar que sim. Mas o que é feito desse espírito humano quando o submetem às regras atrofiantes da vida, sem vida, do trabalho na cidade? Onde está o espaço para a contemplação do oceano? Onde está aquele horizonte sonhador dos antigos?
Não sou mentiroso. A vida nas cidades dá-nos qualidade de vida. Dá-nos assentos. Por todo o lado há bancos... e alguns até são forrados a veludo! Dá-nos cinema, dá-nos teatro, música, espectáculo, exposições, arte, livros, bibliotecas, escolas, Universidades, hospitais, carros, muitos carros, seguros, finanças, exército, ministros e seus ministérios, assembleias, clubes, ginásios, supermercados, mercados, minimercados, mercearias, compras on-line... “compre on-line através do www...”, a quantos www’s podemos hoje em dia aceder numa cidade? Onde fica, hoje em dia, o posto do correio mais próximo?
Hoje gostava de receber uma carta perfumada, talvez, se possível, com uma ou outra mancha húmida das lágrimas de quem a escreveu. Sentir nessa carta um punho firme e decido. Mas em que ilha fica esse marco de correio? Em que península?
Existe quem dê tudo por tudo para se manter fechado, limitado pela beira-mar bravia. Preso nas escarpas de si mesmo. Com a imensidão quase surreal do mar a seus pés. Depois, essas pessoas juntam-se todas num enorme amontoado de casas a que chamam cidade. Inventam uma máquina enorme que tem rodas e anda, chamam-lhe autocarro, e passam o resto da sua existência para lá e para cá. Contudo esquecem-se da sua verdadeira origem: a terra. Não a sentem, não têm intimidade com ela. Então esquecem-se muitas vezes da sua condição de península. Esquecem-se que vivem segundo duas coordenadas: “– uma metade ligada á família, aos amigos, à cultura, à tradição, ao país, ao sexo e à linguagem e a muitas outras coisas, e a outra metade a desejar que a deixem sozinha a contemplar o oceano.”
Estamos então na era da apatia global. Todos nós somos inevitavelmente penínsulas, mas alguns (muitos) continuam a insistir ser ilha.
1 comment:
Algum dia te sentast no alto de uma encosta e olhaste la para baixo? sentiste o chao por debaixo das tuas maos e ao mesmo tempo la longe...sentiste os teus pensamentos ligados a nada e o mesmo nada a afluir a ti?? uma imensidão, uma calma, uma tranquilidade divina. quase irreal. onde só tu e a tua ligação com a terra existem...isso acontece! in some places at some times...
eu n tenho muito jeito para descrever a sensação de poder que nos invade nestes momentos, mas convido t a vir ca experimentar para depois a descreveres convenientemente! lol xD
o que acontece aos nossos pensamentos em momentos como estes. em momentos como o do autocarro. em que nos sabemos activos mentalmente mas somos incapazes d mover um musculo, e entao, fundimo-nos com a paisagem.com o envolvente. imoveis.iguais!...um constante tick-tack interior...
Post a Comment